domingo, 29 de agosto de 2010

Reflexão

Ensinar exige curiosidade[1]
Um pouco mais sobre a curiosidade
Se há uma prática exemplar como negação da experiência formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educan­do e, em conseqüência, a do educador. É que o educador que, entregue a procedimentos autoritários ou paternalistas que impedem ou dificultam o exercício da curiosidade do edu­cando, termina por igualmente tolher sua própria curiosida­de. Nenhuma curiosidade se sustenta eticamente no exercício da negação da outra curiosidade. A curiosidade dos pais que só se experimenta no sentido de saber como e onde anda a curiosidade dos filhos se burocratiza e fenece. A curiosidade que silencia a outra se nega a si mesma também. O bom clima pedagógico-democrático é o em que o educando vai apren­dendo à custa de sua prática mesma que sua curiosidade como sua liberdade deve estar sujeita a limites, mas em permanente exercício. Limites eticamente assumidos por ele. Minha curi­osidade não tem o direito de invadir a privacidade do outro e expô-la aos demais.
Como professor devo saber que sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino. Exercer a minha curiosidade de forma correta é um direito que tenho como gente e a que corresponde o dever de lutar por ele, o direito à curiosidade. Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto. A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosida­de, sua capacidade crítica de "tomar distância" do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de "cercar" o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de com­parar, de perguntar.
Estimular a pergunta, a reflexão crítica sobre a própria per­gunta, o que se pretende com esta ou com aquela pergunta em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de respostas a perguntas que não foram feitas. Isto não significa realmente que devamos reduzir a ati­vidade docente em nome da defesa da curiosidade necessária, a puro vai-e-vem de perguntas e respostas, que burocraticamente se esterilizam. A dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, en­quanto fala ou enquanto ouve. O que importa é que profes­sor e alunos se assumam epistemologicamente curiosos.
Neste sentido, o bom professor é o que consegue, enquan­to fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma "cantiga de ninar". Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas de seu pensamento, surpreen­dem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas.
Antes de qualquer tentativa de discussão de técnicas, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica assim, é preci­so, indispensável mesmo, que o professor se ache "repousado" no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. É ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, re-conhecer.
Boa tarefa para um fim de semana seria propor a um gru­po de alunos que registrasse, cada um por si, as curiosidades mais marcantes por que foram tomados, em razão de que, em qual situação emergente de noticiário da televisão, de propa­ganda, de videogame, de gesto de alguém, não importa. Que "tratamento" deu à curiosidade, se facilmente foi superada ou se, pelo contrário, conduziu a outras curiosidades. Se no pro­cesso curioso consultou fontes, dicionários, computadores, livros, se fez perguntas a outros. Se a curiosidade enquanto desafio provocou algum conhecimento provisório de algo, ou não. O que sentiu quando se percebeu trabalhando sua mes­ma curiosidade. É possível que, preparado para pensar a pró­pria curiosidade, tenha sido menos curiosa ou curioso.
A experiência se poderia refinar e aprofundar a tal ponto, por exemplo, que se realizasse um seminário quinzenal para o debate das várias curiosidades bem como dos desdobramen­tos das mesmas.
O exercício da curiosidade a faz mais criticamente curio­sa, mais metodicamente "perseguidora" do seu objeto. Quan­to mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se "rigoriza", tanto mais epistemológica ela vai se tornando.
Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso mesmo sem­pre estive em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida ne­nhuma do enorme potencial de estímulos e desafios à curiosi­dade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adoles­centes das classes sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão que, enquanto secretário de Educação da cidade de São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o com­putador. Ninguém melhor do que meus netos e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computado­res com os quais convivem.
O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intui­ção, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser. Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosida­de. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar com outro ruído cuja ra­zão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço. Admito hi­póteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação.
Satisfeita uma curiosidade, a capacidade de inquietar-me e buscar continua em pé. Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência.
Quanto mais faço estas operações com maior rigor metó­dico tanto mais me aproximo da maior exatidão dos achados de minha curiosidade.
Um dos saberes fundamentais à minha prática educativo­crítica é o que me adverte da necessária promoção da curiosi­dade espontânea para a curiosidade epistemológica.
Outro saber indispensável à prática educativo-crítica é o de como lidaremos com a relação autoridade-liberdade, sempre tensa e que gera disciplina como indisciplina.
Resultando da harmonia ou do equilíbrio entre autorida­de e liberdade, a disciplina implica necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser transgredidos.
O autoritarismo e a licenciosidade são rupturas do equilí­brio tenso entre autoridade e liberdade. O autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenci­osidade, a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade. Autoritarismo e licenciosidade são formas indisciplinadas de comportamento que negam o que venho chamando a voca­ção ontológica do ser humano.
Assim como inexiste disciplina no autoritarismo ou na li­cenciosidade, desaparece em ambos, a rigor, autoridade ou liberdade. Somente nas práticas em que autoridade e liberda­de se afirmam e se preservam enquanto elas mesmas, portan­to no respeito mútuo, é que se pode falar de práticas discipli­nadas como também em práticas favoráveis à vocação para o ser mais.
Entre nós, em função mesma do nosso passado autoritá­rio, contestado, nem sempre com segurança por uma modernidade ambígua, oscilamos entre formas autoritárias e formas licenciosas. Entre uma certa tirania da liberdade e o exacerbamento da autoridade ou ainda na combinação das duas hipóteses.
O bom seria que experimentássemos o confronto realmente tenso em que a autoridade de um lado e a liberdade do outro, medindo-se, se avaliassem e fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas mesmas, na produção de situações dialógicas.
Para isto, o indispensável é que ambas, autoridade e liber­dade, vão se tornando cada vez mais convertidas ao ideal do respeito comum somente como podem autenticar-se.Comecemos por refletir sobre algumas das qualidades que a autoridade docente democrática precisa encarnar em suas relações com a liberdade dos alunos. É interessante observar que a minha experiência discente é fundamental para a práti­ca docente que terei amanhã ou que estou tendo agora simul­taneamente com aquela. É vivendo criticamente a minha li­berdade de aluno ou aluna que, em grande parte, me preparo para assumir ou refazer o exercício de minha autoridade de professor. Para isso, como aluno hoje que sonha com ensinar amanhã ou como aluno que já ensina hoje devo ter como objeto de minha curiosidade as experiências que venho tendo com professores vários e as minhas próprias, se as tenho, com meus alunos. O que quero dizer é o seguinte: Não devo pen­sar apenas sobre os conteúdos programáticos que vêm sendo expostos ou discutidos pelos professores das diferentes disci­plinas mas, ao mesmo tempo, a maneira mais aberta, dialógica, ou mais fechada, autoritária, com que este ou aquele profes­sor ensina
[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (Capítulo 2, p. 84-90)